terça-feira, novembro 29, 2005

RETALHOS - Incha, desincha e passa I

Depois do ataque às nossas cabeças com o barbeiro a ser o único homem capaz de elevar a sua cadeira da barbearia à categoria de um cadafalso ou mesmo à da terrível guilhotina, tal o sentimento descabelado que provoca nas suas “vítimas”, o dia a dia de uma recruta nos pára-quedistas sem ser um inferno, é sem dúvida terrivelmente duro em todos os aspectos.
É um embate tremendo esta alteração nas nossas vidas sob o ponto de vista organizacional. Quase todos os candidatos traziam expectativas erradas pelo fascínio do voo e dos saltos. Vínhamos pelo espírito de aventura e pelo deslumbramento de fazer parte de uma tropa especial, movidos por sonhos mais ou menos comuns de chegar até ao brevete, mas sem avaliar o percurso.
Regras e mais regras nos são impostas. Elas são-nos inscritas para sabermos com o que podemos contar, desde a primeira hora.
Depois de aprendermos a pôr os atacadores nas botas, a fazer as camas, a vestir, a arrumar os cacifos e com todos já fardados, ainda com os bonés de pala espetada da goma, marchando já a passo mais ou menos certo, o instrutor deu pela falta de um colega que se demorou um pouco mais na casa de banho, e logo gritou:
- Quando um falha, todos os outros pagam da mesma maneira. Dez flexões para toda a gente – enquanto cumpríamos continuou o sargento:
- Aqui senhores recrutas, não há lugar para o individualismo ou egoísmo. São uma equipa que têm de agir entre si. Por uma questão de sobrevivência e de respeito pela elite que vos espera, é assim que é e é assim que vai ser sempre no vosso futuro!

Nesta etapa, fazem-se novas amizades e cumplicidades salutares na acção e desta vez determinadas pelas alturas de cada um. O Martins (Risotas), minhoto de gema da Pousada de Saramagos, tinha mais um centímetro do que eu e portanto precedia-me na coluna. Por esse facto ele foi quase sempre meu colega de exercícios nas corridas, nas marchas e em quase tudo. Era por assim dizer o meu par.
O Risotas era a boa disposição em pessoa e daí a alcunha. Era um amigo a sério, sempre disponível em todas as situações. Devo-lhe a sua amizade e solidariedade nos momentos de maior pressão em que chegava a duvidar das minhas capacidades.
- Vamos lá Marques, esta merda incha desincha e passa - incentivava o Risotas.
Quando não o via com um sorriso malandro, era ele que estava em sofrimento e só lhe dizia:
- Vamos lá com essa merda pá, que raio de minhoto és tu? – ele esboçava um sorriso – como a dizer que não se queria dar por vencido.
Ninguém se deixa ir abaixo, mas os rostos ilustram bem o ar inexpressivo e obstinado de quem pretende vingar. O cansaço psicológico é mais duro que o físico. Estamos todos sempre na expectativa sobre o que se seguirá, a mente acaba por sofrer mais do que todo o resto.
Quando se está em formação no campo de instrução, uns arregalam os olhos para afugentar o choque resultante de um tratamento que nos escapa ao controle, outros erguem a cabeça, dispostos a não vergar. Todos compenetrados e direitos muito atentos às palavras dos instrutores que nos podem levar do céu para o inferno, em segundos, nunca se sabem as ideias que atravessam a mente dos duros e exigentes instrutores.
É tudo ou nada em termos de emoções, começa-se ali a formar o espírito de equipa, a cumplicidade com o Risotas alastra no pelotão. Tudo é novo para nós e por isso apoiamo-nos uns aos outros. Se um cai, caem todos. Se um vence vencemos todos. Na dureza dos exercícios, no peso das ordens e no imperativo das vozes de comando é este o nosso dia a dia.
A primeira semana é terrível pelo choque, pela violência no tratamento e pela dureza dos exercícios, logo se registam as primeiras baixas. Não é por acaso que nas primeiras três semanas ninguém pode sair de fim-de-semana e mesmo com essas cautelas alguns desistem, desertando para a emigração.
Os que ficam são os que aceitam com disciplina a voz rija que os dirige, bem diferente do carinho da família que ficou para trás. Estamos todos por nossa conta. Longe de casa e muito perto de descobrirmos uma realidade ainda desconhecida, boa ou má, mas que já nos marca para sempre. Integramo-nos com muito trabalho e determinação sempre lutando por vencer o medo.

(continua)

quinta-feira, novembro 24, 2005

RETALHOS - O famoso pente zero

Em 11 de Maio de 1970, apresentei-me em Tancos, no Regimento de Caçadores Pára-quedistas, para dar início à verdadeira aventura, que era o alistamento nas tropas pára-quedistas, frequentar a escola de recrutas e ir por aí adiante até conquistar a célebre boina verde e o brevete.
Chegámos por volta das cinco e meia da manhã, depois de uma viagem turbulenta de sete horas num comboio, procedente do norte, superlotado só com militares. Do fim-de-semana chegavam ao Entroncamento, de vários pontos do país, militares do Exército, da Força Aérea e os Pára-quedistas às centenas.
Um grupo de pára-quedistas esperava por nós à porta de armas, para nos acompanharem às instalações. Na entrada do quartel e de forma imponente lá estava a estátua que simbolizava um Pára-quedista vindo dos céus. Todos os militares eram obrigados a “bater a pala” em sinal de respeito, nós feitos “maçaricos”, limitámo-nos a olhar com respeito
Depois das apresentações a cerca de duas centenas de candidatos a recrutas, os três amigos foram colocados no 7º pelotão da 1ª Companhia. O facto de continuarmos sempre juntos tem uma explicação simples: quando pela primeira vez, em Tancos nos mandaram formar, ficámos juntos mais por instinto de defesa que outra coisa preconcebida e assim nos foi atribuída numeração seguida. Por via disso e durante 40 meses, andámos sempre próximos.
Formámos na parada. Distribuíram a cada um o kit de fardamento com 32 peças e logo o oficial destacado avisou:
- Senhores recrutas, acabou de vos ser distribuído um kit de fardamento, composto por 32 peças, para iniciarem a vossa vida militar. No fim do serviço militar, demore este o tempo que demorar, têm que devolver todas as peças para fazerem o respectivo espólio.
Depois de uma pausa continuou:
- O nosso Sargento vai acompanhar-vos e ajudar nas tarefas que se seguirão, deixo-vos com ele.
Notou-se algum agrado na forma educada como nos tratou o Capitão, isso era visível em cada um de nós.
- COMPANHIA!!! – soou o vozeirão do sargento. Isto está uma bandalheira, eu quero toda a gente agrupada por pelotões na próxima formatura.
- Têm meia hora para arrumar o kit que vos foi distribuído e regressarem já equipados de ténis, calção e camisola branca – gritou o sargento.
- Vamos depois fazer uma visitinha que se vai prolongar por toda a manhã.
Apesar de inebriados pela simpatia do capitão, veio o reverso e acordámos com este vozeirão do sargento, como que a alertar que a tropa começaria naquele momento.
E começara mesmo, acabaram as palavras simpáticas com que até aí sempre nos tinham brindado, a bandalheira na formatura como naquele dia, acabara a roupa civil no quartel e estava quase certo que também iria acabar o cabelo daqueles jovens cabeludos de uma época de ouro, a dos anos 60, que ainda hoje falam dela com evidente orgulho.
Numa tremenda confusão cerca de 200 recrutas rapidamente mudaram de roupa e como se veio a confirmar fomos ao nosso amigo e famoso pente zero.
Pela primeira vez na minha vida e em 5 minutos, vi-me despojado do cabelo até ao casco e o surpreendentemente já não nos reconhecíamos, mais parecíamos almas penadas. Apesar do tempo quente ou talvez por isso, sentia-se na barbearia um cheiro esquisito, era o cheiro a carecada que eu acabei por testemunhar ao longo de 40 meses mais de uma vintena de vezes.
Desta vez senti-me nu, espoliado e violentado com esta carecada higiénica. Senti-me mais frágil, mais despido e já com saudades do que tinha ficado para trás: os colegas de trabalho, os amigos e como não podia deixar de ser a namorada. Mal cheguei à caserna fui ao saco e desencantei um bloco para escrever para ela e para a famelga.

Aproveitei para tirar, no interior da caserna, umas fotos comigo já fardado de Mauser e capacete de guerra, mas com ar apalermado. Como se não fosse ter milhentas oportunidades de tirar esses retratos sem ser a fingir. Enfim… devia ser efeitos da anestesia que a carecada me provocou.
Na época dos cabelos à Beatles, o famoso pente zero produziu em nós efeitos anormais, ficámos todos estranhos e quase não falávamos uns com os outros. Aproveitei para ir dormir bem cedo, descansando das últimas 24 horas que quase me derrotaram, mas um pensamento não parou de martelar a minha cabeça desprotegida: “Lindo começo este!”.

segunda-feira, novembro 14, 2005

RETALHOS - Embarcar para a aventura II (fim)

Depois de uma manhã dedicada aos testes físicos, lá fomos para o refeitório onde registei como primeira nota e que me agradou sobremaneira o seguinte: além do regime militar dos Pára-quedistas ser duro, exigente, com uma disciplina férrea, e apesar de vivermos num período salazarista-fascista, ali respirava-se democracia. A comida que era distribuída ao recluso ou ao recruta, era exactamente a mesma para o resto das patentes, fosse comandante ou ministro.
Com o sol a pique, logo nas primeiras provas começaram a vir ao de cima algumas particularidades, sobressaindo dois grupos distintos. Os que tinham a ver com força física bruta... desde o trabalhador agrícola ao que trabalhava nas obras e até na estiva, o trabalho exigia-lhes apenas força física e pouco mais, tinham poucos conhecimentos, só a escolarização e aprendizagem até á idade escolar primária e muitos deles sem a completarem. O outro grupo tinha a ver com menos força física, mas mais destreza, habilidade e inteligência. Estes eram aqueles a quem eu chamei de putos da rua, os reguilas habituados às espertezas, aos narizes esmurrados e algumas cabeças partidas mas que levavam a melhor.
Nós, para além do Fiúza que vinha das fainas de mar sendo uma força da natureza e muito combativo, éramos putos da rua.
- Zé, já viste nas que nos metemos? São só brutamontes – disse o Jorge.
Aproveitei para lhe devolver o incentivo, com um sorriso descolorido dizendo-lhe.
- Pá, se eles conseguem nós também conseguiremos.
- Jorge onde é que eu já ouvi isto? – Disse o Fiúza com ar de gozo.
Lá fomos dando cumprimento ao programa, com corridas, saltos, passagem de obstáculos e outros que tais, onde eu me sentia como peixe na água.
Há três aspectos que me marcaram: a força física, a inteligência e a coragem.

A força física
Nunca me tinha passado pela cabeça o difícil que era elevar o peso do nosso corpo, só com a força dos braços numa barra de aço suspensa.
- Tudo lá para cima minhas meninas, ou pesa-vos o rabo – dizia o instrutor.
Eu não sei o que pesava, mas subindo à força de braços, esgatanhando ou trepando eu tinha que chegar lá acima cinco vezes.

A Inteligência
Apercebi-me dessa importância numa das provas quando às tantas, gritou um sargento nada barrigudo e com um porte físico de respeito:
- Vai toda a gente junto daquele caixote tirar um par de luvas e regressar aqui imediatamente.
De terra batida onde o cascalho abundava, lá fomos nós mostrar a nossa agressividade. Tocou-me em sorte, uma rapaz alentejano que pesava bastante mais do que eu. Comecei então a enfardar porrada, mas ia sempre à luta, quanto mais enfardava, mais ganas e vontade me dava para ir para cima dele.
- Alto lá, parem! – Avisou o instrutor.
Depois virou-se para mim, talvez com um misto de pena por estar a levar uma boa dose, mas também com admiração pela valentia, e apontando com o dedo espetado para a cara do opositor, gritou-me:
- Que adianta a valentia se não está a ser inteligente.
- Vês, aqui a cara deste chaparro todo contente? É aqui que tens de lhe bater. Aqui!
- Olhos bem abertos e vai-lhe às fuças sempre que lhe vires a cara destapada.
Claro que a partir daquele momento tudo mudou, deixei de ser eu a enfardar. A partir dali, toda a valentia e confiança do amigo alentejano se esfumou, acabando por se acobardar e encolher. Isto levou a que fosse eliminado.

A Coragem
Partimos para o último teste só com treze resistentes para o temido salto da torre. Todos alinhados para ver um salto de demonstração. Quando vimos um pára-quedista subir a uma torre enorme, preso por uma corda e lançar-se para baixo… um friozinho subiu pela espinha acima não deixando ninguém respirar até a queda se consumar. Os cabos retesaram-se, a cerca de um metro do solo, levando o Pára-quedista a manter os membros completamente firmes colados ao corpo, para no momento do choque não virar espantalho e lesionar-se gravemente.
Lá fui subindo, com as pernas trémulas de “coragem”, até ao patamar superior e em posição de salto lembrei-me do conselho do instrutor de boxe: “olhos bem abertos e vai-lhe às fuças”. Ao sinal atirei-me com os olhos bem abertos para o espaço, recusando-me sempre olhar para baixo. Só houve um colega que não conseguiu saltar, já em cima da torre entrou em pânico e gritou:
- Nãoooooooooo, não consigo! Não…
De facto o temível salto da torre, mete mais respeito que saltar de um avião.
Coincidência ou não, apenas metade dos que passaram nas provas médicas foi apurada.
Foi assim que nós, os três amigos, ficámos apurados para as Tropas Pára-quedistas em 18 de Dezembro de 1969, ficando eu com o Nº 1626/69.

quarta-feira, novembro 09, 2005

RETALHOS - Embarcar para a aventura I

Em 12 de Dezembro de 1969, em Itália, ocorre o "Massacre de Estado": bombas colocadas por fascistas, e manipuladas pelos serviços secretos italianos que praticam a "estratégia da tensão" (o que só se soube anos mais tarde), explodem na estação de Milão, matando várias pessoas. O anarquista Pietro Valpreda é acusado e preso por dois anos, injustamente.
Cinco dias após estes acontecimentos, lá estava eu na estação dos Caminhos-de-ferro em Viana, pelas 22 horas, para embarcar na aventura de fazer 300 km em cerca de 7 horas.
Tinha sido convocado para prestar testes nos pára-quedistas em Tancos. Tancos é uma freguesia de Vila Nova da Barquinha, situada no centro do país, com uma população civil de cerca de 600 almas, onde para além do Entroncamento que deve o seu nome ao facto de aqui entroncarem duas linhas de comboio: a que liga Lisboa ao Porto, e a que liga a Linha do Norte a Espanha, surge situado numa pequena ilha escarpada, no curso médio do rio Tejo, o Castelo de Almourol que é um dos monumentos militares medievais mais emblemáticos e cenográficos da Reconquista, sendo, simultaneamente, um dos que melhor evoca a memória dos Templários no nosso país.
Lá chegámos por volta das 5 horas da manhã, 50 candidatos a pára-quedistas de vários pontos de país, cansados da viagem mas também excitados pela aventura. Ficaram todos à conversa, todos com histórias para contar. Sentia-se ali um misto de basófilas e valentões e eu lá pensei com os meus botões: onde é que me vim meter? Acabando por comentar com o Fiúza pescador:
- Pá, já viste isto? Acho que não pertenço a esta guerra, só marados e cabeludos.
Então debaixo daquela calma enervante diz o Jorge Viana:
- Tende calma, não há-de ser nada, se eles conseguem… nós vamos conseguir.
E pensava eu que era um puto reguila da rua. Comparado com os tripeiros da banharia, alfacinhas e outros, até me sentia meio envergonhado.
E quase sem darmos conta, toca o clarim de alvorada e como uma mola todos nos levantámos pensando que era para nós. A partir desse momento, acho que as pulsações subiram para a centena e por lá permaneceram, durante todo o dia. Enquanto isso, os militares “verdadeiros” lá se preparavam para a formatura e para mais um dia de instrução militar.
E lá fomos nós também para a parada, bem desalinhados como convêm para irmos ao pequeno-almoço. Depois disso sim, aí é que foram elas. Pois na parada avisaram que íamos ter toda a manhã para exames médicos e de tarde para a parte física, e logo comentei:
- Não fizerem já isso no verão em Viana?
E atalha logo o habitualmente calmo e pacato Jorge Viana:
- Em Viana exames médicos para ir para a tropa? Tás maluco, lá só foi para mostrar os tomates e ir para a lista dos apurados. Não resistimos a uma sonora gargalhada.
Como é norma ficámos todos nus toda a manhã, mas agora com uma simples diferença: estava um frio de rachar. Todos bem alinhados e virados contra uma parede. Lá chegaram os tipos de bata branca com um marcador preto na mão dizendo ao colega mais próximo, mas desta vez com educação:
- Levante o pé se faz favor!
E nós apesar de nos sentirmos como simples cavalos para ver os cascos, a forma educada como fomos interpelados, desarmou-nos. E lá foram eles fazendo algumas cruzes nas plantas dos pés e eu sem perceber patavina. Chegou a minha vez, analisaram e deixaram uma cruz num deles o que me deixou ainda mais confuso. Mais tarde vim a saber que também tinha os pés um pouco “chatos” mas com o resto estava tudo bem. Entre medições, auscultações e pesagens, começaram a excluir os casados, quem tinha problema de dentes ou varizes e sei lá mais o quê, só sei que nos testes físicos reprovaram metade, sobrando para a parte da tarde 25. Na ida para o almoço um pára-quedista que por lá andava e com ar de “peito inchado” foi avisando:
- Da parte da tarde nas provas físicas, “vão de vela” mais metade.

(Continua)

quinta-feira, novembro 03, 2005

RETALHOS - Não ouvem suas merdas I

Estávamos em Julho de 1969, quando o astronauta Neil Armstrong bem lá em cima na Lua, dizia aquela famosa frase: "Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade" e eu cá em baixo com os meus quase 20 anos e com um calor abrasador, vou, estupidamente, todo pimpão, a uma Junta Distrital (obrigatória) de Recrutamento Militar em Viana do Castelo.
Estávamos todos no átrio, rapazes de todas as classes e origens. Do rapaz pobre da urbe (como eu), ao filho de boas (ricas) famílias, que envergonhados por não pertencer à maioria (a pobreza abundava por estas regiões), refugiavam-se num canto. Dos vulgos saloios das aldeias e das serras, de ceroulas e chancas no verão, até ao filho do abastado agricultor.
Entrámos e um sargento do exército, logo berrou com aquela voz de suposto macho latino:
- Todos em bicha.
Claro, que já havia bichas nessa altura, mas o estúpido sargento, era assim que nos mandava enfileirar para sermos observados. Eu disse observados? Nada disso… era só para darmos o nome e alistarmo-nos, para a guerra colonial em África. Mas para quê observar? Se aproveitavam tudo e todos e ainda eram poucos.
E lá ia vociferando aquele animal fardado:
- Não ouvem suas merdas, é assim que querem ser militares?
Ouvem-se vozes em surdina entre os reguilas de pé descalço cá da urbe:
- Quem pensa que é esse filho da puta?
Ninguém teve a coragem de levantar a voz para aquela barriga fardada. Lá nos pesaram e mediram, sempre nus, não sei porquê, pois aproveitavam coxos e marrecos e tudo o que viesse à rede. Quem não quisesse, que fugisse de assalto para a França como tantos outros.
Depois de todos estes procedimentos, deram-nos uns impressos para preencher, se não quiséssemos ir para o exército, poderíamos escolher entre a Marinha e a Aeronáutica. O gajo afinal era nosso amigo! Até nos sugeria outras opções! Nada mais falso, o que eles queriam eram voluntários para tropas especializadas a que hoje vulgarmente chamamos: “Forças de Intervenção Rápida”.
Nessa altura ainda me martelava nos ouvidos “Não ouvem suas merdas? É assim que querem ser militares?” e foi com isso a zurzir nos ouvidos, que tomei a minha primeira grande decisão e disse para o Jorge meu colega de muitas lides desde a escola primária:
- Militar, como ele não vou ser de certeza, vamos para a marinha Jorge?
Respondeu-me de imediato o Jorge:
- Estás maluco, eu nem sei nadar!
E do outro lado do trio, disse o Fiúza o pescador:
- Vamos Zé? Eu vou inscrever-me para a Marinha.
Estas posições opostas, de dois amigos de infância, baralharam-me as contas, pois fazia intenção de irmos os três juntos para a tropa.
Então, sem lhes dizer a verdadeira razão, pois para mal dos meus pecados também não sabia nadar, disse:
- Nada disso, vamos para a Força Aérea e o culpado é aquela barriga fardada, não quero ir para o Exército.
E foi assim, que me inscrevi na Força Aérea. Como dentro desse ramo das forças armadas havia pára-quedismo e putos da rua como nós ávidos de aventura, vai daí… alistámo-nos, os três amigos, nas Forças Pára-quedistas.
Assim, tomei uma das minhas decisões mais importantes, a qual, iria marcar positivamente o resto da minha vida, quer pelo espírito de grupo e camaradagem, quer pelos ensinamentos que fui recolhendo ao longo de 40 meses de serviço militar, onde o lema era: “Que nunca por vencidos se conheçam”.
Mas a parte estúpida desta crónica, foi o que aconteceu a seguir. O grupo oriundo das aldeias e das serras, munindo-se de bombos e pandeiretas, foram tocando e bebendo ainda mais, pelas ruas como quem ia para uma festa muito importante, quando muitos deles acabaram por perecer na guerra.
Só passados uns bons meses, é que eu percebi e interiorizei o sentido e as motivações com que eles no fim da inspecção militar iam festejar pelas ruas, como o anunciar de uma festa ou romaria. Era provavelmente um grito de libertação, por saírem do mundo atrasado e das aldeias em que o ditador Salazar nos tinha deixado.
Sempre que me lembro disto, lembro-me, simultaneamente dos mortos da guerra, da carne para canhão em que eles se tornaram…
Descansem em paz.