sábado, dezembro 31, 2005

RETALHOS - VIANA, Social & Cultural

A Revista Regional “VIANA, Social & Cultural”. Está a publicar os Retalhos em forma de crónicas.
Aqui deixo a capa da revista, se algum amigo interessado em subscrever a assinatura, a qual deve ser enviada para:


VIANA, Social & Cultural
Rua da bandeira, 597, 3º - Esq. Traseiras
4900-561 Viana do Castelo

vianasc@portugalmail.pt
martaacp@portugalmail.pt

Nota da redacção:
Num tempo de necessária reflexão polí­tica, a VS&C inicia agora a publicação das memórias de guerra de um ex-combatente, alguém que tem algo a recordar na sua vida e a ensinar ao seu país, José da Silva Marques, cuja colaboração bem vem na linha editorial desta publicação que é feita, em grande medida, num presente feito de memória, para um melhor futuro. De resto, à semelhança da nossa edição anterior. E porque nunca esquecemos nada! Na forma de ”tema de capa” desta edição de Dezembro de 2005, este trabalho terá a sua continuidade, mês após mês, nas próximas edições desta revista. Até lá, aqui ficam estes…

Obrigado a todos, José Marques

quinta-feira, dezembro 29, 2005

RETALHOS - Preparação para a guerra I

Musica em fundo: Ballad of The Green Berets


Depois de mais uma viagem numa noite interminável e atribulada, mas saborosa, de fim-de-semana, a meados do mês de Setembro de 1970 lá estou de novo no Regimento de Caçadores Pára-quedistas em Tancos. Quando dou comigo, encontrando-me em formatura na parada para nos ser apresentado o Capitão Gomes, comandante do Curso de Combate que visava fundamentalmente a preparação para a guerra. Segundo se contava, e eu vim a confirmar isso muito mais tarde, este oficial era um autêntico especialista no tipo de guerra que se travava em Angola, Guiné e Moçambique, aliás, como tantos outros que as forças Pára-quedistas tinham no terreno.
Para mim, que só ambicionava ser Pára-quedista, esta última etapa era perfeitamente dispensável para as minhas ambições. Ser Pára-quedista, ostentar com orgulho a Boina Verde e no peito o Brevete era o corolário do trabalho desenvolvido ao longo de quatro semanas e que culminaram no prazer de voar, de contemplar a terra tão pequena lá em baixo. É indescritível a sensação de paz e tranquilidade que o contacto com a natureza no seu estado mais puro nos proporcionava. É o voar com o silêncio e com a ausência de peso.
Até Ícaro se deslumbrou com a bela imagem do sol e sentindo-se atraído, voou em sua direcção, acabando por deixar a cera de suas asas rapidamente se derreterem e acabando por cair no mar - apesar de ser sem dúvida um deslumbramento, tal o domínio que se sente sobre a terra, pela sensação de liberdade e poder - não se pode perder o discernimento, pois aqueles segundos passam demasiado depressa e os procedimentos a cumprir durante o voo não permitem veleidades.
Dei comigo a pensar cá com os meus botões:
- “Caramba, afinal para ser Pára-quedista ainda preciso de fazer muito mais?”
Fui acordado destes pensamentos com o vozeirão do sargento que comandava a formatura:
- “COMPANHIAAAAA. SÉEEE… UP” (Voz de sentido)
- “DÁ LICENÇA MEU CAPITÃO… COMPANHIA PRONTA.
- “Mande descansar” – diz o Capitão Gomes
Com a cabeça em completa turbulência - mais parecia o Noratlas quando ligava os motores para me levar a voar nos céus do Arripiado - ia retendo algumas frases chave do discurso mobilizador que o capitão no seu (porte altivo apesar da imagem (falsa) que a sua cara de bonacheirão, que parecia transmitir) nos ia passando:
- “O curso de combate está pensado para dotar o Pára-quedista de competências técnicas e de tácticas de combate para o cumprimento das missões necessárias na guerra. “ – e continuava dando especial ênfase a algumas frases:
.../...

quarta-feira, dezembro 28, 2005

RETALHOS - As viagens de fim-de-semana III (fim)

Dizia o outro grupo dos “Páras”:
"- O nosso capitão obrigou-nos, a todos, a dormir nus, na parada, e depois obrigou-nos, ao pequeno-almoço a comer gafanhotos e grilos; ele é mesmo bom, esteve na Guiné, e parece que matou mais de cinquenta turras.”
Eu que já não suportava aquelas bazófias, comecei a remoer os castigos e reparos que apanhara nas seis semanas já passadas:
"- Levante essa cabeçorra, soldado Marques, endireite essa pala do boné, parece a de um ciclista".
“- Sabe para que serve essa pala, bem comprida, que você teima em lhe fazer uma bainha? Para olhar dela só para baixo e nunca da pala para cima” - vociferava o sargento.
“- Para cima estão os seus superiores, ouviu? Dez flexões para aprender.”
“- Meu sargento – tentava eu argumentar.”
“- Quinze flexões – respondeu ao meu esboço de argumento.”
Enquanto eu estava nas minhas reflexões e os outros continuavam com as gabarolices, um tipo que usava boina negra, como a da polícia militar, de forma educada, sem ser ofensivo, interpelou-os de forma pedagógica dizendo:
“- Porque é que vocês ficam tão satisfeitos com as sacanices que vos fazem?”
Num solavanco do comboio estalou uma confusão… já não bastava o cheiro a trovoada que pairava no ar, tinha que vir aquele solavanco servir de rastilho. Envolveram-se todos numa alegre batalha de murros e cabeçadas, insultos e palavrões, entre boinas verdes e vermelhas, com o feijão verde pelo meio, como sempre sem culpa nenhuma, a levar para tabaco, o que durou quase toda a viagem.
Virei-me para o Jorge, pois o Fuíza só o voltei a encontrar no quartel. “- Está tudo louco, vou mudar de carruagem.”

domingo, dezembro 25, 2005

RETALHOS - As viagens de fim-de-semana II


Mas foi sol de pouca dura. Quando dei por ela, era domingo e já estava de novo na estação. Ás 9:50, esperávamos o comboio que vinha de Valença e nos levaria até à estação de Campanha, no Porto. Uma viagem de 2 horas para fazer 70 km, onde nos esperava, um autêntico pandemónio, com a mudança de comboio que nos levaria ao Entroncamento. Um comboio, já a abarrotar de militares, esperava ainda pelos que vinham na linha do Minho. Era mesmo o desenrascanço à militar. Todos apinhados até à porta, mas os mais atrevidos entravam mesmo pela janela. Os revisores da CP, não se metiam com a maralha, era o salve-se quem puder.
Mais uma viagem Porto/Entroncamento, num domingo à noite, agora com o comboio repleto de militares. Sempre que não arranjava um lugar sentado (e nunca arranjava) ia mesmo deitado nas bagageiras superiores por cima das janelas ou nos preciosos cacifos à entrada da carruagem, com evidente prejuízo para as malas e bagagens. Como em Campanhã já os preciosos lugares estavam faustosamente ocupados, restou-me viver a experiência de dormir em pé, solidamente amparado pelos colegas que me acompanhavam desde Viana. Eles também estavam escorados por uma horda compacta de militares de todos os ramos, estando sempre em maioria os da Boina Castanha (Exército).
Como sempre, uma autêntica viagem aos infernos, de cinco horas, até ao Entroncamento. Na primeira hora, todos conversavam ou pelo menos tentavam fazê-lo, tal era a barulheira, mas momentos depois, rendiam-se ao cansaço de dois dias mal dormidos (os de suposto descanso). Para isso, o maralhal procurava o seu travesseiro que não era mais que o ombro do parceiro.
Quando se ouvia, de forma mais forte, o “pouca-terra” do bater dos carris, a experiência dizia-nos que se aproximava o revisor, para picar os bilhetes. Coitado do homem, levava mais de um hora, em cada carruagem, para cumprir, mal, a tarefa. Havia sempre quem o tentasse ludibriar. Passavam à socapa para lugares já controlados ou escondiam-se em tudo quanto era sitio. O certo é que o melhor lugar para fugir ao picar do bilhete, era aninhado no meio de um grupo, onde o possível contacto ficava à distância do comprimento do braço do revisor até ao visado. Perto de mim, para além dos militares do exército, iam dois grupos, barulhentos, um de mancebos de "páras" e outro de comandos, estupidamente a vangloriarem e a elogiarem o comportamento dos seus instrutores. Cada um deles, como desafiando o outro, parecia delirar de satisfação com as provações físicas e as humilhações sofridas naquela semana, infligidas por alguns fanáticos com patente.
"- O nosso tenente obrigou-nos a mergulhar a cabeça na imundice da fossa do quartel”. “- Ele é o máximo, tem o curso de não sei quê, e esteve na legião estrangeira " - dizia um comando secundado por outros

quarta-feira, dezembro 21, 2005

RETALHOS - As viagens de fim-de-semana I

Todos os Pára-quedistas ostentam garbosamente o seu brevete e em especial a famosa Boina Verde, que John Wayne imortalizou no filme “OS BOINAS VERDES”, com o título original: The Green Berets.
A apresentação do filme dizia: Os Boinas Verdes eram considerados como a força de combate mais valente sobre a face da Terra - as Forças Especiais de Elite, cuidadosamente escolhidas e treinadas para a guerra anti-guerrilha do Vietnam, como a Legião Estrangeira Francesa, na Indochina. Acrescento eu: ou como nos anos 60 Os Boinas Verdes Portugueses em África.
Foi na minha incorporação, que pela primeira vez, na história dos pára-quedistas foi estreada a farda azul, vindo substituir a bonita farda amarela. Mas a boina verde, essa não mudou desde 1955, mantendo-se como elemento de união da família pára-quedista.
Os "páras" granjearam a fama de militares de elite, não só pelas aparições públicas, mas também, e muito especialmente, porque para ser boina verde era e é necessário, percorrer um longo e duro caminho. O jovem candidato submetia-se às provas de admissão e só após o último salto do Curso de Pára-quedismo, passava a usar por direito próprio a boina verde.
Ainda hoje, este símbolo continua a atrair milhares de jovens que, das cidades, vilas e aldeias de Portugal, vêem nele algo que "mexe com eles".
No fim-de-semana, irradiámos de Tancos, para outros lugares, a nova farda azul com o brevete reluzente e a sua boina verde. Íamos para junto dos nossos familiares e partilhar, com eles, o que tão duramente tínhamos conquistado. A surpresa pela farda era notória, nas pessoas que connosco cruzavam, mas ao mesmo tempo mostravam respeito e admiração, provocando no nosso cérebro o martelar insistente do refrão habitual das marchas pára-quedistas:

Olhem bem, sintam respeito
Eles têm asas ao peito
Cabeça erguida, heróis do ar
Boinas Verdes vão a passar.

(Continua)

sexta-feira, dezembro 16, 2005

RETALHOS - Da recruta até à boina III (fim)

Quando saí destes segundos que me trespassaram, dei por mim sobrevoando o Tejo e o campo de saltos do Arrepiado. Um barulho ensurdecedor aliviava-me o medo, olhei para os colegas e nem um sorriso de confiança, tal a concentração de todos. Lá ao fundo vislumbrei o Risotas, que mesmo com um sorriso amarelo me acalmou e me fez lembrar do “vai-lhe às fuças”.
Até que chegou a minha vez... finalmente o “já”, aquilo que tanto ansiava, a pancada confiante do largador nas minhas costas, atirou-me para aquilo por que tanto lutara... o salto... o esticão da fita extractora, foi como se alguém me tivesse dito: “acorda, conseguiste!” Ao mesmo tempo o vento a batia-me na cara, com carícias que nunca mais vou esquecer. Olhei para baixo e vi árvores tão pequeninas, que pensei que o chão ainda estava longe, mas qual quê, eram árvores do Ribatejo, muito pequenas. Aterrei da pior maneira, comendo terra lavrada e ainda tive que correr atrás do pára-quedas, qual barco à vela.
Apesar disso, o encontro com o solo foi uma experiência que queria repetir vezes sem conta. Claro que repeti, sempre com a alegria que só um verdadeiro Pára-quedista pode descrever... Seguiram-se mais cinco saltos e no último obtive aquilo que tanto esperava. Agora sim, era merecedor... Depois de tanta luta, tanto sacrifício, tanta lágrima caída, os instrutores, que tanto me tinham ensinado, sendo para mim exemplos a seguir, com ar orgulhoso, colocaram-me na cabeça o meu justo prémio... a Boina Verde! Uma luta contra as lágrimas que teimavam em cair-me, só provava que, somente quem passa por tão duras provas, lhe sabe dar o valor. Era minha e juntamente com ela, já erguia ao peito o meu brevete.

Era um Pára-Quedista, um Boina Verde!!

quarta-feira, dezembro 14, 2005

RETALHOS - Da recruta até à boina II

Lá voltámos à temível torre de saltos uma e outra vez. Como a foto ilustra, eram quedas a 45º com embate violento, em que ninguém se magoava, pois bem treinados e preparados fisicamente, o corpo enrolava-se ao tocar no chão.
Tão martirizado pela intensidade dos exercícios e pelos vários embates a que era sujeito: cambalhotas no empedrado, crosses de botas calçadas, luta em que predominava o boxe, pistas de cordas onde queriam fazer de nós uns Tarzan’s, pistas vermelha e branca como meras toupeiras, cada vez me sentia com menos tempo para estar cansado. Ficava á mercê dos instrutores, mas nunca dos abutres. Já interiorizara que eles tinham razão e portanto nem em pensamento os questionava.
Instrução dura, Combate fácil, era o lema que nos norteava sempre. Pensava comigo:
- Vamos para a guerra? Então, há que prepararmo-nos como deve ser.
A semana dos saltos, há muito tempo almejada, tinha chegado, finalmente ia saltar.
- Para a semana serão os saltos – gritou o sargento de cima do palanque - vão finalmente dar corpo a estas semanas de treino intensivo e ganharem merecidamente a vossa boina verde e o brevete.
E gritando a plenos pulmões:
- INSTRUÇÃO DURA…
- COMBATE FÁCIL – Responderam forte, mas com emoção, as centenas de vozes dos futuros pára-quedistas.
Estas seis semanas de instrução reduziram-se a poucos segundos de forma vertiginosa no meu cérebro. O esforço, testado ao limite, o calor a bater no corpo, o suor a escorrer por cada milímetro da pele, o querer vergar pelo cansaço ganho a cada dia que passava, a voz austera, firme e sabedora do instrutor, o testar toda a energia física e mental, era superior a tudo o que eu julgava poder aguentar.
Não me sentia especial, nem diferente dos outros, era sim, um futuro pára-quedista!
A boina era ainda uma miragem, mas estava tão perto... iria consegui-la. Todos os instrutores estavam ali, em frente a nós, a incutir-nos na alma e no sangue o que é ser Pára-quedista... Tudo transpirava à tão falada mística dos Boinas Verdes. Senti o peso de um toro, travando com ele a teimosia de ambos. As calistenias, pareciam minutos intermináveis, mas cada gota de suor ali largada era para que o verde da boina fosse merecido. Os crosses, com os instrutores, que noutra vida quase de certeza foram lebres nunca derrubadas pelo predador, faziam com que no final pensasse que não existia oxigénio suficiente para me restabelecer de tal cansaço... mas foi mais um que concluí! A pista de cordas, cada vez que olhava para ela, só pensava que nada ali era fácil mas ia conseguir! A sensação de se mandar para o chão como se do avião estivesse a sair, fazia com que nesse instante, pensasse que poderiam vir os crosses, as calistenias os saltos da torre e tudo o mais, porque estava ali para ser aquilo que tantos queriam e poucos conseguiam! Realmente o sonho comanda a vida... e agora o sonho vai tomar forma, a forma da placa de embarque do Nordatlas com o seu som inconfundível, o azul do céu e para concluí-lo, os campos do Arrepiado ali ao lado do Tejo....
(Continua

sábado, dezembro 10, 2005

RETALHOS - Da recruta até à boina I

Concluí a recruta, com a Cerimónia do Juramento de Bandeira, sem a presença de qualquer dos meus familiares, pois a disponibilidade era pouca e os cobres não abundavam. A minha pobre mãe, para além deste rapaz, ainda tinha o meu mano velho, o Manuel Elpídio, no exército em Sacavém. Este, acabou por não ir para a guerra, mas sim, por passar os últimos dias na prisão, à custa de um episódio curioso que, bem lembrado, até dá para rir.
O Manel era casado, por via daqueles deslizes fortuitos entre namorados e quem o queria ver contente, era em casa, junto da mulher e mais tarde do fruto dessa relação que eu apadrinhei. Então vai daí, surripiou os passaportes de saída do quartel, autorizando-se a si próprio a ir visitar a família. Se juntarmos a isto, o facto de, enquanto cabo da guarda, ter permitido a saída do quartel, de colegas não autorizados, deu como resultado uns dias à sombra.
Ah valente mano, só por isso já valeu a pena, de entre os três irmãos que nós éramos, só eu ter batido com os costados na guerra.
Finda a cerimónia, gozei alguns dias de férias, que bem merecia, findas as quais e precisamente no dia em que o meu outro mano, o Fernando, fazia 15 anos, inicio a segunda fase da minha aventura, o Curso de Pára-Quedismo, para a conquista do almejado brevete.
O primeiro dia, confesso que não me agradou muito, pois começou logo pela vacinação contra a febre-amarela. Éramos umas centenas de recrutas alinhados e sentados no chão, já sem camisa, à espera do sacrifício. Passava o primeiro enfermeiro com um tabuleiro de algodões ensopados em tintura de iodo, com que desinfectava a zona onde seria dada a picada. O segundo, vinha com as agulhas e sem parar, espetava uma no sítio assinalado. O terceiro, trazia uma seringa enorme, que enroscava na agulha e comprimia o líquido, que rapidamente era injectado, provocando uma sensação muito dolorosa, agravada pelo terror às enormes agulhas. O quarto, passava com outro recipiente, retirando e recolhendo as referidas agulhas. Por último, um outro enfermeiro, com novos algodões molhados em tintura de iodo, fazia a desinfecção final para minimizar os efeitos da vacina, que provocava uma tremenda reacção deixando o braço quase imobilizado, e impedir a formação de um hematoma.
Assim, demos início ao primeiro dia, das três semanas em terra, com uma bateria de exercícios, especialmente duros, onde se privilegiavam os movimentos de braços, para que o corpo não "emperrasse”. A amostra do primeiro dia, não augurava nada de bom para o cabedal. O curso iria culminar com uma semana no ar, de forma a serem executados seis saltos em cinco dias, para finalmente podermos ostentar no peito, o brevete de pára-quedista.
Acho que nunca sofri tanto na minha vida, como nestas três semanas.
- Quem disse que o homem não chora? Puro engano, chora por amor e chora também pela dor. Senti que o meu arreganho, destemor e vontade de vencer, não chegavam. Valeram o espírito de corpo e os amigos. Destaco o Risotas, sempre com uma palavra de ânimo e coragem apesar do seu sofrimento.
Os exercícios eram desumanos e violentos demais para que, quem está de fora possa acreditar na sua execução. Os que eram feitos em especial com toros de madeira, eram de uma violência extrema, especialmente: os Alás, a Ama-seca, a Rosca, o Combinado, o Lançado e o Cumprimento.
Ao fim de cada sessão diária eu só dizia para o Jorge, colega da escola primária:
- A minha mãe não criou um filho para isto, vão para o raio que os parta
- Zé falta só um dia e vamos conseguir, depois do banho vamos ao bar e pago-te uma cerveja.
- Não brinques comigo pá, acho que ia morrer bêbado -dizia sem fôlego.
- Ai de ti Jorge, se contas esta merda em Viana, a minha mãe, coitada, tinha um chilique.
Ao longe passava um pelotão de novos recrutas, na maior bandalheira, com passos algo trocados. O Fiúza não se conteve:
- A figura que nós fazíamos pá, já pensaste que para a semana já vamos saltar?
- Como o tempo passa - atalhou o Jorge – alguém dizia: incha, desincha e passa.
(Continua)

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Todos os ministros são inteligentes

Extraordinária peça escrita em 1867 que se mantêm actualizadíssima
“ORDINÁRIAMENTE todos os ministros são inteligentes, escrevem bem discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porem, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o ESTADISTA. É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política e expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?”

Eça de Queirós em 1867

domingo, dezembro 04, 2005

RETALHOS - Incha, desincha e passa II (fim)

Ao fim de três semanas, foi-nos concedida uma saída para podermos recuperar energias, visitar a família, os amigos e as namoradas. Quase todos partiram para as suas terrinhas, só quem morava para lá da serra do Marão, não se aventurou pois os dois dias de férias iriam direitinhos para a viagem.
Com a farda azul substituindo a velha farda cinzenta, apresentámo-nos em parada para um revista ao fardamento com todos bem alinhados, botas reluzentes, e com o bivaque altivo da aeronáutica bem aconchegado tentando tapar a careca. Surgiu finalmente a voz de comando mais ansiada:
- DESTROOOÇAR…
Como por magia só se via bivaques no ar a comemorar, como se tivesse acabado a vida militar e não um simples passaporte de fim-de-semana ao fim de vinte e um dias.
Foram dois dias que voaram num ápice. Às cinco da manhã de segunda-feira, estava de volta ao quartel pronto para novas batalhas. Mais de uma dúzia de recrutas aproveitou para não voltar mais optando pela deserção. Enquanto desfazia o saco da roupa lavada, que minha mãe tinha esmerado e acautelava o chouriço da ordem no armário, reparo no Covilhã (um recruta que era pastor na serra da estrela - daí a alcunha) com aquele porte físico impressionante de farda verde de instrução, deitado no chão, rejeitando a cama esmeradamente feita, completamente pronto para iniciar a recruta às oito horas e não resisti:
- Covilhã, para te deitares no chão deves estar maluco ou com saudades da serra e das ovelhas.
- O gajo está maluco – diz outro.
Responde o Covilhã com absoluta calma:
- Malucos estais vós! Prefiro dormir no chão e aproveitar este tempinho do que perder meia hora a fazer a cama. Logo mais, está na hora de ir dar cabo do cabedal.
Olhámos uns para os outros e quase todos seguimos o exemplo.
O tempo vai passando e o corpo acostuma-se à dor. Os nervos fintando as emoções e os desejos para responder apenas perante a razão. Braços treinados e cabeças frias perante a dureza da recruta.
Em finais de Julho de 1970, com o aproximar do fim da recruta, autocarros azuis da Força Aérea esperam-nos para uma visita de estudo à Barragem do Castelo de Bode e à Nazaré. Eis que surge a notícia há muito esperada principalmente por quem aguarda mudanças: a morte de Salazar. Depois de uma cadeira ter-lhe pregado realmente uma partida: queda, a cabeça a bater no chão, hematoma cerebral, bloco operatório, diminuição das faculdades mentais o que o levou a dois anos em agonia.
Depois de muito hesitar, Américo Tomás acaba por nomear Marcelo Caetano para a Presidência do Conselho de Ministros. Alguns, junto de Salazar, fingem que é ele ainda o Presidente do Conselho ou ele finge acreditar na encenação e, a fingir, lá vai dando despacho aos assuntos correntes. Morre a 27 de Julho de 1970, com 81 anos de idade e 42 de poder ininterrupto.
Estando a nossa escola de recrutas praticamente concluída e o pessoal devidamente fardado fomos aproveitados para irmos ao Mosteiros dos Jerónimos onde o ditador estava em câmara ardente, fazer a visita da ordem, na segunda metade da aprazada visita.
Cerca de duas semanas depois, terminei a minha recruta com aproveitamento, em 14 de Agosto de 1970.

sábado, dezembro 03, 2005

Uma vergonha que nos envergonha


Passados 160 anos de ter sido morto o ultimo português, surgem os paladinos da justiça e da democracia e executam o número 1000: Kenneth Lee Boyd. (Não gosto dos E.U.A.)

O duplo homicida tornou-se ontem o milésimo prisioneiro a ser condenado à morte desde que a pena máxima foi reinstaurada nos EUA, em 1976. “Esta execução é um marco de que todos deveríamos envergonhar-nos”, afirmou Thomas Maher, advogado de Boyd.

A decisão de abolir a pena de morte em Portugal – pela primeira vez na Europa – chegou tarde para Luísa de Jesus, a última condenada à forca, depois de ter morto 33 bebés. (Tenho honra em ser Português)

Chamava-se Luísa de Jesus, nome que mereceu destaque na História portuguesa. Não pela valentia dos actos, mas por ter sido a última mulher condenada à morte em Portugal. Depois dela outros morreram, todos homens, até que, em 1867, a pena foi abolida para os crimes civis. O País tornou-se assim a primeira nação europeia e uma das primeiras do mundo a extinguir esta forma de castigo.

Para a História fica o nome e a recordação macabra. Mas já nessa altura o povo começava a insurgir-se contra o castigo. Quando, em 1846, foi morto em Lagos o último português, há muito que a população pedia o fim da pena de morte.